No final de janeiro, Netflix lançou uma minissérie para contar a história da tragédia da Kiss. Produção entrou em ranking das séries estrangeiras mais assistidas no mundo
Mesmo depois de uma década da tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, aquela noite de 27 de janeiro de 2013 permanece assombrando o Brasil. O incêndio terminou com a morte de 242 pessoas e 636 pessoas feridas. O caso avançou lentamente na Justiça ao longo dos anos, o que acentuou o sofrimento de amigos e familiares. Para os sobreviventes, a data deixou cicatrizes permanentes.
Uma dessas sobreviventes é a fisioterapeuta Jéssica Duarte, 30 anos, que vive em Curitiba desde março de 2013. Ela mora na capital paranaense com o marido e com a filha Zoe, de um ano. Após a tragédia, teve 40% do corpo queimado. Além disso, carrega marcas daquele dia no corpo e na mente.
Em entrevista à Banda B, Jéssica revelou quais são as suas memórias daquele 27 de janeiro. Acompanhada do então namorado e um primo (do namorado), ela contou que ir para a Kiss nunca foi a primeira opção. Antes, o plano era ir para um bar de Santa Maria. No entanto, como havia muita fila, o trio desistiu e optou por procurar outro local para ir na cidade.
“A fila tava imensa. A gente ficou uma hora quase esperando na fila. A gente não ia conseguir entrar. Os pontos de baladas não eram tão próximos um ao outro. Chegando na Kiss tinha uma vaga na entrada. Uma única vaga! Que parecia que estava nos esperando”, diz
“Eu percebi que não ia dar conta e desmaiei”
Neste momento, já tinha passado da 1h da madrugada. Os três ingressaram na Kiss, que estava lotada. Por volta das 2h30, o incêndio começou na boate. “A gente ficou sentindo o ambiente. Lá por certa hora fomos ao banheiro. No que saí do banheiro já estava dando um tumulto que a gente não tinha a menor ideia do que era. Era muito comum ter briga na Kiss. Fomos em direção à porta e no que a gente olhou para o lado já tava aquela fumaça preta”.
Para fugir da boate em meio a um grande tumulto, Jéssica estava atrás do primo do então namorado e segurava na blusa dele. Enquanto isso, o companheiro dela estava logo atrás tentando empurrar a multidão para que os três saíssem com segurança do local.
“Foi muito rápido. Então, eu comecei a sentir aquela fumaça entrando na minha narina. Era algo muito forte e eu não vou saber explicar o quão forte era. Logo apagaram as luzes (da boate) e eu soltei a mão dos dois. Eu percebi que não ia dar conta e desmaiei”, conta
Jéssica foi retirada da boate por uma pessoa que não conhecia na época. Ela disse que por certo momento não tinha pulsação, mas foi reanimada na saída da balada e levada para o hospital.
Gás utilizado por nazistas
Na tragédia da Boate Kiss, estima-se que a causa da morte da maioria das vítimas tenha sido intoxicação por cianeto. Uma espuma de colchão era utilizada como forma de isolamento acústico na boate. Ela não era notada pelos órgãos de fiscalização e se trata de um material inflamável.
O artefato utilizado pela banda no dia da tragédia solta faíscas que podem chegar a 4 m de altura, motivo pelo qual deve ser usado apenas em ambientes externos. No caso da Boate Kiss, o cianeto foi liberado pela queima do material poliuretano, do qual era composta a espuma utilizada.
O cianeto, inclusive, foi o principal gás utilizado pelos nazistas na 2ª Guerra Mundial para exterminar judeus e outras minorias nas câmaras de gás. As vítimas da Kiss morreram entre 3 e 5 minutos após o incêndio ter começado.
Um ano de recuperação
Um dia após ser hospitalizada, Jéssica foi transferida de Santa Maria para Porto Alegre. Por quase um mês, ela chegou a ficar na UTI. Nos primeiros dias, foi atendida por um médico conhecido da família, que fez um procedimento para evitar que a jovem tivesse o braço amputado. “Tava muito queimado”, conta.
Ela permaneceu em Porto Alegre até o fim de fevereiro. “Fiquei na casa do meu primo que morava lá e eu tinha que ir no hospital praticamente todos os dias para fazer curativos”. Na entrevista, Jéssica destacou que levou praticamente um ano para alcançar a recuperação plena.
“Eu não conseguia mexer os braços por conta de dor e tudo mais. Aqui em Curitiba ainda tive tratamento com fisioterapia física e pulmonar todos os dias. Tratamento continuou até o fim do ano de 2013”, afirma
Seriados da Boate Kiss
No final de janeiro, a Netflix lançou a minissérie “Todo Dia a Mesma Noite”, inspirada no livro homônimo da escritora e jornalista Daniela Arbex. A produção é uma das mais assistidas no mundo entre as de língua não-inglesa. A série usa de personagens ficcionais para ilustrar o caso, no entanto, não é unanimidade na Netflix e divide opiniões de internautas
Recentemente, o Globoplay também lançou um documentário para relembrar os dez anos da tragédia da Boate Kiss.
“Não que eu não concorde com a série. Mas não assisti!“, diz Jéssica ao opinar sobre a série
Mudança de vida
Ao chegar em Curitiba em 2013, Jéssica conta que veio para a cidade muito por estar mais próxima dos pais.
“Não consigo sair de longe dos meus pais. A retomada foi difícil, vim para um lugar onde não conhecia ninguém. Dependente da mãe depois de morar sozinha por alguns anos. Foi difícil recomeçar, mas eu tive muito acolhimento. As pessoas me acolheram de forma muito gostosa”, conta
Por conta do tempo em que fez fisioterapia, Jéssica destaca que criou um amor pela área da saúde. Em 2014, ela decidiu fazer curso preparatório para começar a faculdade para se tornar fisioterapeuta.
Nos anos seguintes, Jéssica casou, teve uma filha e passou a trabalhar com Fisioterapia Pediátrica com crianças especiais. Além disso, ela também atua como consultora de amamentação.
Consciência coletiva
Passados dez anos do incêndio na Boate Kiss, ainda não há ninguém condenado criminalmente pela tragédia. O julgamento que condenou quatro pessoas pelo incêndio em 2021 foi anulado e ainda não há perspectiva para um novo júri.
Com a série, Jéssica disse que espera que a tragédia da Kiss crie uma consciência coletiva na população. “Não podemos confiar que estamos seguros nos lugares só porque existe um proprietário”.
Ela ainda complementa: “nós frequentadores temos a missão e o dever de saber se estamos em lugares seguros. Isso pode acontecer em qualquer lugar. Qualquer lugar que a gente frequenta pode estar irregular”, diz.
Banda B